Tragédias anunciadas
O que está hoje em desenvolvimento no mundo é um conflito de civilizações, tal como nos referiu Samuel Huntington. Estas suportam-se sempre numa estrutura religiosa, depois projetada na moral, na ética e no ordenamento político e jurídico, embora com adaptações.
Tenho vindo a deixar correr o curso dos acontecimentos que vêm tendo lugar na Ucrânia, sendo que se me mostrou difícil deixar o televisor. É verdade que os acontecimentos eram simples de prever, mas há sempre uma certa atração pelos debates, em geral alta e naturalmente condicionados, em que a Rússia é sempre má, mesmo um horror, sendo tudo o resto excecional, porventura impecável. É o Ocidente a falar, claro está, para mais com a omnipresença da dita democracia em funcionamento, estrutura que exige um grau de cinismo, de hipocrisia e de adaptação das consciências a um nível deveras singular.
Hesitei ontem no modo de abordar hoje este texto, acabando por decidir-me a deitar mão de um exemplo que ilustra o que está a passar-se. Imagine o leitor que participava comigo num debate numa estrutura cultural e social da sua terra. Na mesa, o presidente da estrutura, o autarca local e um apresentador de nós dois – eu e o leitor –, tudo girando ao redor de um tema político fortemente polémico. A dado passo da sua intervenção, sem mais, eu levantava-me e disparava dois tiros sobre o leitor, mas que não o conduziam à morte, deixando-o, embora, em estado muito grave.
Era chamada a força pública, que me detinha, levando-me para as suas instalações. E, dado que o acontecimento envolvera arma de fogo, o caso passava para a alçada da Polícia Judiciária. Feitas as diligências simples, essenciais à identificação minha e do leitor, o caso era remetido ao tribunal. Aqui, na semana seguinte, começava o julgamento, com o juiz a perguntar-me os dados pessoais e se havia agido intencionalmente, procurando assassiná-lo. Num ápice, do juiz recebia a resposta de que ficava condenado a 25 anos de prisão, ao abrigo de certo artigo do Código Penal.
Ora, como o leitor sabe bem, tal acontecimento não decorreria deste modo. Era aberto um inquérito, que também iria inquirir o leitor logo que o seu estado de saúde permitisse. E se se viesse a apurar que existia uma qualquer moscambilha ilegal e a dois, também o leitor se veria condenado, certamente sem nada que o ligasse a uma tentativa de homicídio.
Usei aqui este exemplo fictício para mostrar que é isto que hoje se passa ao nível das nossas televisões: só se aborda a invasão da Ucrânia pela Rússia, sempre sem se curar de explicar o que realmente esteve a montante deste acontecimento. É como se tudo isto tivesse surgido do nada, qual loucura de Vladimir Putin e Sergei Lavrov. Não sendo adivinho, nem dispondo, como por igual acontece com o embaixador António Martins da Cruz, de uma bola de cristal, em casa ou nos lugares que frequento, entendo dever expor aqui algumas velhas e históricas previsões minhas e em que, lamentavelmente, acertei.
No verão de 1982 passei o mês de agosto na Nazaré. Aí pelo meio do mês, conversando sobre a situação do País e do mundo, referi para duas irmãs que estavam à conversa comigo na praia: olha que as coisas parece que mudaram, mas não mudaram. Poderia ter dito outra coisa equivalente, naquela conversa, como, por exemplo, que a enorme parte dos que nesse tempo davam vivas a Abril e morras ao Estado Novo poderiam mudar de casaca num ápice, assim as condições o exigissem.
Os anos passaram e surgiu o histórico concurso sobre O MAIOR PORTUGUÊS DE SEMPRE. Bom, o resultado foi o hoje conhecido: saiu Salazar como vencedor. Ou seja: as coisas só na aparência haviam mudado. Um acontecimento a que há que juntar o facto de Mário Soares, ou Álvaro Cunhal, nunca terem conseguido, com os seus partidos, uma maioria absoluta, ao contrário do que se deu com Aníbal Cavaco Silva.
Nessa tarde de agosto, logo um pouco à frente daquela minha saída, também referi que iria chegar o dia em que lançariam os aviões sobre as cidades. Bom, infelizmente, também acertei. E expliquei a causa daquela minha dedução: se eles desviam aviões, andam de cidade em cidade, fazem exigências que, em geral, não são satisfeitas, acabando por ser mortos por grupos de operações especiais, bom, então morrer por morrer, sempre é preferível morrer por aquele meio, porque a devastação irá ser um horror. Bom, caro leitor, também aqui acertei, tendo exposto este meu raciocínio e a correspondente previsão a uma miríade de conhecidos ou amigos.
Uns anos depois, mal passado o 19 de agosto, com o fim da União Soviética, referi a um advogado conhecido, de uma tertúlia noturna, que se havia entrado no início de uma nova guerra a nível mundial: é a maior tragédia que nos atingiu e que agora começou. E expliquei: nós vivemos em Paz desde 1945, o que ficou a dever-se à posse recíproca de armas nucleares e ao “tratado de Tordesilhas” entre americanos e soviéticos, com espaços próprios de influência, razoavelmente respeitados, mas com isto – o fim do comunismo soviético – o que vai dar-se é uma tomada do poder no mundo por parte dos Estados Unidos, com consequências que irão ser terríveis. Bom, o resultado está hoje já à vista, e com a guerra nuclear já bem perto de nós. Infelizmente, também aqui acertei.
Do mesmo modo, logo que Joe Biden chegou ao poder, também pude escrever que sempre os soviéticos preferiram os republicanos aos democratas, tal como os diversos poderes iranianos que se seguiram à queda da monarquia persa. A obra, OS MANDANTES DO ATENTADO DE CAMARATE, de Alexandre Patrício Gouveia, mostrou isto mesmo, com os reféns norte-americanos a serem libertados, por acordo secreto com os republicanos, cinco minutos após Ronald Reagan ter tomado posse. E mesmo com Donald Trump, O Bronco, tudo correu num ambiente sem guerra no plano da política internacional. Chegou Biden à Casa Branca, e aí temos a guerra à vista, desta vez já no plano do nuclear. Mas vamos, então, olhar a história que se situa a montante do que se vem passando.
O primeiro marco referente de uma iniciativa estratégica contra a União Soviética foi o Pacto de Munique, com Chamberlain e Daladier a deslocarem-se à Alemanha, a fim de amainarem Hitler e os seus homens, procurando garantir que os alemães não se virassem para o Ocidente, deixando um potencial de iniciativa para um ataque contra a União Soviética, dado o anticomunismo conhecido de Hitler.
Perante esta iniciativa, Estaline deitou-se a pôr em prática o Pacto Germano-Soviético, com a deslocação de Ribentrop à União Soviética, a fim de, com Molotov, assinarem o referido pacto. A consequência disto foi a contrária da sonhada por Chamberlain e Daladier, com Hitler a iniciar as suas ações ao seu redor próximo e para ocidente.
Terminado o conflito mundial, surgiram as Nações Unidas. Nelas apareceu o Conselho de Segurança, com a presença, como membros permanentes, com direito de veto, as potências vencedoras do anterior grande conflito, também com a França. Esta estrutura, naturalmente, não pôs um fim naquela limitação referida pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa na TVI, com Judite de Sousa, quando ali era comentador: desde o meu segundo ano de Direito que aprendi que o Direito Internacional Público é o Direito dos poderosos. Acontece que existem mais poderosos com direito de veto a Ocidente que a Oriente. Além do mais, todas as instituições internacionais públicas se situam no Ocidente, sendo que os Descobrimentos criaram uma supremacia cultural e histórica da Europa sobre o Sul e o Oriente do Planeta, onde se situa a grande maioria dos povos que se viram dominados pelos Estados ligados aos Descobrimentos.
A paridade nuclear entre os Estados Unidos e a União Soviética, de um modo indiscutível, foi o que permitiu que a Paz se tivesse mantido até há pouco desde 1945. Surgiram dois momentos de especial tensão, mas logo resolvidos e muitíssimo menos graves que o ora vivido: o bloqueio de Berlim e a crise dos mísseis de Cuba – com consequências nos mísseis norte-americanos na Turquia. No resto das décadas, até ao fim da União Soviética, o que surgiram foram guerras por procuração. As relações bilaterais, entre americanos e soviéticos, foram boas, por vezes excelentes. A verdade é que a ação dos Estados Unidos foi sempre mais eficaz, mormente no combate às possíveis ascensões de comunistas ao poder e nos lugares mais diversos do mundo: Indonésia, Irão, Chile, Itália, Filipinas, Coreia, Vietname, etc.. De modo concomitante, os designados partidos do socialismo democrático, ou da social-democracia, tornaram-se nos grandes operadores da grande estratégia dos Estados Unidos, sempre em nome do tal socialismo democrático. Bom, quase se extinguiram.
Os Estados Unidos foram, até hoje, o único Estado que utilizou armas nucleares contra um outro, o Japão. A verdade é que não se notaram reações especiais contra tal iniciativa. O próprio Mário Soares, em entrevista a Clara Ferreira Alves, mostrou-se um apoiante da decisão norte-americana, deixando a nossa concidadã algo admirada. Outra seria a tomada de posição de Soares se o mesmo se tivesse dado com a União Soviética.
Também os Estados Unidos invadiram o Panamá, bem como Granada, aqui a fim de derrubar um comunista democraticamente eleito, colocando no seu lugar um fantoche. Simplesmente, não faltaram golpes apoiados pelos Estados Unidos, e mesmo homicídios, como os de Enrico Mattei, Aldo Moro, Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa. Entre muitos outros casos. E chegou mesmo o general Curtis LeMay a preparar um plano de ataque nuclear às 30 principais cidades soviéticas com 200 bombas nucleares como as usadas no Japão. Um plano em que se admitia a continuação do comunismo na URSS e 30 milhões de mortos nos Estados Unidos como resultado das represálias soviéticas. E no golpe de depôs Zukarno e levou Suharto ao poder, também se eliminou meio milhão de indonésios comunistas. O problema é que não houve problema, porque tudo fora obra dos líderes da tal grande democracia ocidental… A tal em que o voto não é geral, dado que se o fosse, o Partido Republicano nunca venceria as eleições, como no-lo expôs Donald Trump no 60 Minutos.
Por todo o mundo ocidental se impôs censura em momentos de guerra. Até nas Malvinas assim se deu. E nunca ninguém proibiu, no Ocidente, de se publicarem revistas, ou funcionar televisões, só porque debitam notícias erradas ou incorretas. Desta vez, porém, com a Russia Today e com a Sputnik o caso é já diferente: o regresso da censura. E chegou-se agora ao ponto de confiscar bens pessoais a milionários, sem julgamento, só por serem russos!! É já uma guerra em curso de desenvolvimento, naturalmente operada pelo Ocidente contra a Rússia. Mais uns meses, e lá se seguirá o caso chinês.
Este comportamento do Ocidente também se pode agora ver com o caso do apoio ilimitado aos ucranianos em fuga, o que merece aplauso. O problema é que esta atitude nunca foi tida para com sírios ou africanos, que se viram abandonados em tendas sobre lama. Eram muçulmanos ou pretos… E o mesmo se pode referir com as vacinas contra a COVID-19, que nunca chegaram aos povos pobres do Terceiro Mundo. É a duplicidade ocidental em movimento. Para já não falar do desmembramento de famílias nos Estados Unidos, com e sem Trump, hoje e desde quase sempre.
Com o fim da União Soviética, violando a palavra dada, os Estados Unidos deitaram-se a fazer entrar os Estados do antigo Pacto de Varsóvia para o seio da OTAN, assim passando a dispor de territórios bem mais próximos de Moscovo, a uma distância de menos de vinte minutos. O caso da Ucrânia constituiria, neste cenário, um risco para a segurança nacional e existencial da Rússia.
É neste cenário que nos surge António Guterres, um católico de primeira grandeza, de parceria com o simpático Francisco em Roma e o católico Biden na Casa Branca. E quando os bispos católicos norte-americanos tentaram retirar a Joe Biden o acesso à comunhão, de pronto Francisco surgiu a impor a correspondente singularidade: a regra não se aplica aqui. É o conflito de civilizações em objetivo movimento: se são pretos ou muçulmanos, bom, não há vacinas nem mobilidade na Europa; se são cristãos, tudo são portas escancaradas. Mas mesmo no domínio cristão há diferenças: uma coisa é ser católico ortodoxo russo, outra sê-lo ucraniano, já separado da hierarquia do grupo anterior. E se for evangélico ou Testemunha de Jeová, bom, tudo é logo muitíssimo pior… Um domínio em que é bom não esquecer o que se passou com o major-general Fernando Passos Ramos.
Por fim, a evidência: uma coisa é a invasão da Rússia ser uma ilegalidade, outra a causa da mesma, e se esta, politicamente, tem de compreender-se. E convém que a Rússia, tal como a China e a Índia, se ponham em cautelas, porque à Rússia sucederá a China e, logo depois, a Índia. Hoje, a União Europeia e a OTAN são estruturas distintas, mas o futuro irá mostrar que os tratados da União Europeia irão adotar a OTAN, nos seus Estados-membros, de modo automático, como sendo a respetiva estrutura de defesa da UE. Assim, entrando para a União Europeia, num futuro de médio prazo, a Ucrânia entrará para a OTAN…
O que está hoje em desenvolvimento no mundo é um conflito de civilizações, tal como nos referiu Samuel Huntington. Estas suportam-se sempre numa estrutura religiosa, depois projetada na moral, na ética e no ordenamento político e jurídico, embora com adaptações. A esta realidade há que adicionar-se o facto de ter sido a Europa a operadora dos Descobrimentos, e de nela estar sediada a base universal da Igreja Católica Romana, a única que tem um chefe no mundo. Neste contexto, a OTAN, tendo começado por ser uma estrutura defensiva, ao alargar-se para a Ucrânia ficaria a oito minutos de um ataque nuclear, com mísseis, a Moscovo, bem como a outras estruturas essenciais da Rússia. Foi esta a causa dos recentes desenvolvimentos que conduziram ao atual conflito na Ucrânia.
A grande comunicação social, sempre ao serviço dos Estados Unidos – recordar as palavras de António Pedro-Vasconcelos na GRANDE ENREVISTA, com Vítor Gonçalves, ao redor do cinema italiano e do norte-americano – e do Ocidente, entretém-se a divulgar a narrativa ocidental, com notáveis exceções de militares nossos, muito corajosos e sabedores.
Um dado é certo: hoje, já extinto o comunismo soviético, mesmo com o dito socialismo democrático em frangalhos, a guerra nuclear chegou às nossas portas, e com um líder norte-americano e um Secretário-Geral da ONU católicos, acompanhados de um Papa também católico, sediado na Europa. O perigo para o mundo começou por chegar pela mão da OTAN, primeiro, e agora pela da Rússia, em resposta àquela agressão, lenta e pouco percetível. E tudo, sempre, em nome da dita democracia. É isso: temos a democracia…
Publicidade