“Mãe”, poema de Carlos d’Abreu
Poemário, rúbrica de Carlos d’Abreu, raiano do Douro Transmontano (1961), Geógrafo (USAL/UC), Arqueólogo (UP/USAL) e Historiador (UPT/USAL), colaborador do Centro de Literatura Portuguesa (UC); investigador, poeta (e diseur), antologista e tradutor; conta com várias publicações nestas áreas.
Mãe
corro o risco de já não viver no teu centenário
por isso lembrar-me-ei especialmente de ti
aquando do nonagésimo aniversário
lá longe, em casa-de-branco do tupi-guarani
à vista dos remansos da guanabara, naquele
rio-de-janeiro que te acolheu em abril
em abril voltaste à casa de xisto que te pertencia
(por avoengos meus terem visto do outro lado mar)
lançando âncora de torna-viagem
num abril casaste e a partir voltaste para outro lugar
do mar. e daí para o sertão onde também em abril desse lugar
te arrancaram e comigo regressaste à terra montanhosa e fria
e noutro abril insististe em volver a pisar o caminho do mar
e mais uma vez em abril te arrancaram da terra ocre
que amaste e retrocedeste às sombrias quelhas piçarrentas
de negras paredes. foram muitas idas e retornos e às fadigas
soçobraste, resistindo apenas três abris mais, até que rua
além te levaram para o recinto onde jazes
e nele de ti me despedi no abril seguinte
em vésperas de rumar à praça do carioca mauá
prometendo-te ser capaz de subir os degraus
que se me deparassem para descer.
fui e em dois abris regressei também
sem saber se coisa alguma vencera
mas a minha peregrinação amainou, e agora sei apenas
que num ido abril à casa onde me pariste e comigo
viveste, voltei para recordar as já distantes canções de embalar
no doce e morno aconchego do teu regaço
(partiste em viagem sem retorno e eu órfão)
mas sei que a minha tristeza seria menos merencória
se ao menos pudesse estar na nossa casa
(a minha ante-câmara da morte)
em vez de só e desagasalhado.
nela hei-de verter todas as lágrimas
para quando em abril for ao teu encontro
repetir os sorrisos de menino
Carlos d´Abreu
“Mãe”, integra o livro de poesia “[des(en)]cantos e (alguns) gritos“, de Carlos d’Abreu, editado em 2017 sob a chancela da editora Lema d’Origem.
“A narratividade dos poemas, associada ao tom coloquial, constitui outro traço distintivo da poética do autor. Muitos dos carmes, em todos os andamentos, evocam as narrativas mágicas e imemoráveis que vão passando de geração em geração. Esta narratividade, coadjuvada pelo ritmo rápido e cadenciado da quadra, predetermina a atenção do leitor para a reflexão e a procura de ‘novos sentidos e possibilidades'”.
Do prólogo de Norberto Veiga
Publicidade