Informativo Digital de Trás-os-Montes e Alto Douro

À medida do momento histórico-político

A este propósito, coloco ao leitor esta pergunta: será que o leitor acha que as sucessivas prorrogações de prazos do Ministério Público, na Operação Marquês, têm que ver com os direitos dos arguidos?

406

Num destes dias, o Observador ofereceu-nos uma entrevista feita ao novo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, (STJ), Henrique Araújo. A verdade é que a entrevista nada teve de pacífico, antes de polémico, centrando a sua atenção em aspetos parcelares da realidade do Sistema de Justiça e entrando mesmo em áreas usualmente exteriores à intervenção constitucional e institucional dos órgãos de soberania.

Como teria de dar-se, o líder do STJ lá nos surgiu com a crítica à morosidade dos grandes processos judiciais. Como se dizia em tempos, creio que em certo anúncio, tinha de ser. O problema da Justiça é que ela deve ser tão veloz quanto possível, colocando a prioridade, centralmente, na ideia da celeridade a qualquer preço.

O Sistema de Justiça, como se sabe, move-se através de estruturas diversas: polícias, advocacia, procuradoria e judicatura. No meio de tudo isto, os visados pela ação da Justiça. E é à luz deste quadro global que o Sistema de Justiça tem de ser olhado e, porventura, repensado. Mas há um dado que, nas nossas tradições, é certo: não pode punir-se com reservas. Significa isto que quem é acusado tem de poder defender-se com os meios essenciais a provar os seus pontos de vista: a defesa dos Direitos Humanos tem de poder operar-se a toda a linha. E depois, existe também uma regra de ouro no Sistema de Justiça que nesta entrevista parece estar ausente: nenhum Sistema Jurídico pode garantir que os atos praticados no seu seio são justos. O que terá de significar, nos Estados que queiram ser de Direito, que, havendo dúvidas, devem dar-se mais garantias aos visados, estes não punidos se, no final do julgamento, subsistirem dúvidas para lá de um mínimo razoável. Ora, tudo isto parece estar esquecido nesta entrevista do Presidente do STJ.

Há um dado essencial a um bom e humano Sistema de Justiça: a independência da qualidade do trabalho dos seus subsistemas. Um dado que só pode ser conseguido se, mau grado a condução da ação penal pelos procuradores, estes puderem ser confrontados com as expectativas contrárias às suas ideias iniciais. Estas não poderão nunca ser consideradas como provas a priori, ou correr-se-á o risco de ver recusar testemunhos só porque fogem ao modelo explicativo inicial de quem dirige as investigações.

Ora, esta realidade é completamente incompatível com a criação de um tribunal de julgamento para os grandes casos da criminalidade económico-financeiro, como Henrique Araújo admitiu ser uma ideia a ponderar. Um tribunal deste tipo pressuporia sempre uma fortíssima integração entre os subsistemas inerentes ao segredo de justiça. Num ápice, uma tal estrutura, de parceria com o DCIAP e com o TCIC, poderia transformar-se numa espécie de estrutura à parte dentro do Sistema de Justiça e do próprio Estado. Seria uma espécie de tudo em um. Uma estrutura em que os arguidos e os advogados teriam um papel menor. Seria a base no nascimento de uma estrutura objetivamente totalitária.

Num outro aspeto, o Presidente do STJ considerou que as detenções mediáticas estão envoltas em demasiado espetáculo, explicando que há muito espetáculo a envolver estas detenções, porque qualquer cidadão liga a televisão e vê durante o dia inteiro as movimentações do arguido – a sair de casa, a entrar nas instalações da polícia, a ir para o tribunal, a sair do tribunal depois de ouvido, para além das entrevistas aos advogados e os comentários políticos –, tudo isto é compreensível porque há um escrutínio público e isso é positivo, mas considero que é um exagero. Ou seja: é compreensível, mas é um exagero. Todavia, o Presidente do STJ não refere a principal fonte desta realidade negativa que identifica, que é a grande comunicação social. Nem refere nunca a sistemática e histórica violação do segredo de justiça, que nunca viu um fim por ação, precisamente, do Sistema de Justiça. Parecem ter sido temas sem real valia.

Mas Henrique Araújo foi mais longe, salientando que nestes casos protagonizados por figuras com notoriedade na sociedade portuguesa, é criada uma grande expectativa do que vai acontecer aos arguidos, levando a que, no final do processo, os cidadãos sintam frustração. Simplesmente, esta conclusão comporta um erro de fundo: ninguém liga, de um modo muito geral, a estes processos, mormente aos seus resultados finais. Quem convive no seio da nossa comunidade de um modo usual e corrente, facilmente identifica o que aqui escrevo. A eleição, em Oeiras, de Isaltino Morais mostrou, precisamente, o que aqui escrevo, e o facto de Rui Moreira, já pronunciado, parecer não estar tocado eleitoralmente corrobora isto mesmo.

Ainda neste domínio, o Presidente do STJ refere que se chega ao fim e vê-se que, afinal, não era aquilo que o cidadão esperava, que contava com uma atitude da Justiça mais contundente para com o próprio arguido. É, precisamente, o tal erro de fundo do Presidente do STJ, porque o cidadão comum o que logo diz, ao início de cada caso espetacular dos nossos, é que tudo dará em nada: ninguém dá hoje grande credibilidade ao Sistema de Justiça. De resto, já era esta a má-língua no tempo da II República.

Quando Henrique Araújo refere que há imensos casos, ainda recentes, de processos que se arrastam durante o inquérito durante muitos anos, a questão que tem de colocar-se é esta: então? De quem é a culpa? Dos megaprocessos? Das polícias? Dos procuradores? Da tal infindamente apontada falta de meios de todo o tipo? Ou será que as coisas serão mais do género da demonstração do Último Teorema de Fermat, que demorou mais de 200 anos a ser conseguida? Há processos e processos! Não existirá nunca um mecanismo do tipo pronto-a-servir para se resolver um processo judicial. E não nos foi dado ver o caso do nosso concidadão Armindo Castro, que confessou ser homicida sem o ter sido, só para defender a mãe, que era também inocente? É um tema sobre que convém olhar o que se passa nos Estados Unidos, claramente sem ser um Estado de Direito, onde até se negoceiam penas, e com os resultados que se conhecem, sendo um deles a presença de um americano nas prisões em cada 140!!

Finalmente, o Presidente do STJ lá se deixou arrastar para a velha ideia, potencialmente geradora de neoautoritarismo no Sistema de Justiça: é preciso cortar com o excesso de garantias de defesa dos arguidos com vista a um maior equilíbrio entre a eficácia os direitos dos acusados. Bom, caro leitor, quase não acreditei, depois de ter podido acompanhar os consulados de Jaime Cardona Ferreira, Jorge Aragão Seia, Henriques Gaspar, Joaquim Piçarra e Noronha Nascimento. Objetivamente, fiquei tão atónito quanto penso ter sido o caso do académico Luís Menezes Leitão, também hoje Bastonário da Ordem dos Advogados. Ou com aquele desabafo do académico e causídico Germano Marques da Silva, logo após o ato corajoso do procurador que pediu a absolvição do académico José Azeredo Lopes.

A este propósito, coloco ao leitor esta pergunta: será que o leitor acha que as sucessivas prorrogações de prazos do Ministério Público, na Operação Marquês, têm que ver com os direitos dos arguidos? Claro que não! O problema está em que é preciso provar o que se acusa. De outro modo, passava-se do Direito para a Ciência do Palpite Forte.
Por fim, aquela entrada nas áreas do Supremo Tribunal Administrativo, mas por igual do Tribunal Constitucional. Todavia, o que mais chamou a minha atenção foi o modo como estas estruturas reagiram: silêncio… A Ordem dos Advogados ainda reagiu, e muito certeiramente, mas aquelas duas instituições simplesmente se ficaram. De resto, o caso dos Tribunais Administrativos e Fiscais é o que nos mostra, precisamente, que a lentidão da Justiça nada tem que ver com o excesso de garantias das partes. E o Tribunal Constitucional é um velho osso atravessado na garganta da nossa Judicatura, realidade desde sempre tratada, com dor bastante, em sucessivos textos de magistrados judiciais. Se acaso não erro, os engulhos começaram logo no tempo constituinte, e continuaram depois, ao redor dos posicionamentos protocolares.

Enfim, um mau momento para o nosso novo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que deste modo nos ofereceu algo à medida do atual momento histórico-político que varre o mundo.

Publicidade